Por Rafael Lobo – Consultor Pedagógico
A literatura exerce um papel fundamental no contexto cultural e social de um povo. Trata-se de uma manifestação universal, uma vez que não existe cultura que viva sem entrar em um contato com algum tipo de fabulação ou o contar/criar histórias. Sua importância não se limita à força imaginativa, mas estende-se ao seu caráter humanizador, seja por meio da oralidade ou da escrita.
As histórias narradas por nossos avós e parentes constituem parte de nossa personalidade e ainda hoje nos auxiliam a ampliar nossa visão de mundo. Expressões como “quem bate na mãe ou no pai vira lobisomem” ou “vai correr bicho à noite!” representam narrativas que cumpriram a função de estabelecer fundamentos importantes em suas comunidades. Goethe, um escritor alemão reconhecido, tem uma frase muito interessante sobre literatura, ele diz que, homem entra na literatura e, quando sai dela, sai mais rico e compreendendo melhor o mundo. No entanto, diversas construções do papel da literatura, principalmente do século do próprio Goethe, partem de uma perspectiva colonizadora.
Assim, considerando o Novembro Negro e a luta pelo resgate da contribuição da população afro-brasileira, cabe perguntar: o que pensadores e escritores negros trazem nos seus textos sobre a função da literatura? E, principalmente, qual a sua importância para a construção humanizadora de nossa autonomia emocional?
Tomemos, como primeiro exemplo, Maria Firmina dos Reis, escritora, professora e mulher negra. Seu primeiro romance, Úrsula, foi assinado sob o pseudônimo “Uma Maranhense”, devido à censura e à impossibilidade de aceitação, no século XIX, de escritos produzidos por mulheres, especialmente mulheres negras. Seus textos foram recuperados por pesquisadores no século XXI, permitindo que sua voz ecoasse novamente. Em um de seus poemas, a autora silencia uma palavra que não pode ser dita, termo que podemos interpretar como “literatura” ou até “liberdade”. Trata-se de uma literatura que ressoa as vozes e os lamentos daqueles homens e mulheres negros(as) lançados ao mar, que por meio da palavra escrita encontraram a liberdade.
Ah! Não Posso
Se uma frase se pudesse
Do meu peito destacar;
Uma frase misteriosa
Como o gemido do mar,
Em noite erma, e saudosa,
De meigo, e doce luar.
Ah! se pudesse!… mas muda
Sou, por lei, que me impõe Deus!
Essa frase maga encerra,
Resume os afetos meus;
Exprime o gozo dos anjos,
Extremos puros dos céus.
Entretanto, ela é meu sonho,
Meu ideal inda é ela;
Menos a vida eu amara
Embora fosse ela bela.
Como rubro diamante,
Sob finíssima tela.
Se dizê-la é meu empenho,
Reprimi-la é meu dever:
Se se escapar dos meus lábios,
Oh! Deus, – fazei-me morrer!
Que eu pronunciando-a não posso
Mais sobre a terra viver.
[ CANTOS À BEIRA MAR, São Luís do Maranhão, 1871, pags. 45-46 ]
Em seguida, Conceição Evaristo, escritora mineira, atuante nos movimentos de valorização da cultura negra brasileira, a autora estreou na cena literária em 1990 através da publicação de contos e poemas na série Cadernos Negros. Sua produção abrangente, que percorre gêneros como poesia, ficção e ensaio, tem conquistado reconhecimento progressivo e ampliado seu alcance junto ao público leitor. Conceição, através da escrita de vozes de mulheres negras, traz no seu poema a tradição da literatura passada através da ancestralidade de todas as vozes-mulheres silenciadas:
Vozes-Mulheres
A voz de minha bisavó
ecoou criança
nos porões do navio.
ecoou lamentos
de uma infância perdida.
A voz de minha avó
ecoou obediência
aos brancos-donos de tudo.
A voz de minha mãe
ecoou baixinho revolta
no fundo das cozinhas alheias
debaixo das trouxas
roupagens sujas dos brancos
pelo caminho empoeirado
rumo à favela
A minha voz ainda
ecoa versos perplexos
com rimas de sangue
e fome.
A voz de minha filha
recolhe todas as nossas vozes
recolhe em si
as vozes mudas caladas
engasgadas nas gargantas.
A voz de minha filha
recolhe em si
a fala e o ato.
O ontem – o hoje – o agora.
Na voz de minha filha
se fará ouvir a ressonância
O eco da vida-liberdade.
(Poemas de recordação e outros movimentos, p. 10-11).
O escritor e cineasta alagoano Lucas Litrento, semifinalista do Prêmio Oceanos de Literatura em 2021. Lucas gosta de falar que a literatura é um ônibus lotado: há um itinerário, mas tudo pode sair do lugar, o ônibus velho pode quebrar ou ser assaltado, as pessoas podem contar as histórias mais esquisitas do mundo entre uma esquina e outra. A literatura de Lucas Litrento ressoa as vozes do rap e da cultura hip-hop, que em suas rimas e estruturas narrativas constroem crônicas das ruas e dos bairros onde vivem. Dessa forma, ele amplifica vozes que partilham de um lugar comum, mas de uma forma única e criativa. Em “verde neon”, uma voz ancestral toma os movimentos do sujeito do texto, exaltando a ancestralidade, mas também trazendo para atualidade, em que a cor verdade, atribuída ao orixá oxóssí, nas religiões afro-indígenas, aparece aqui em uma cor verde neon, que exalta um brilho ultra-forte, construindo assim uma encruzilhada entre a tradição e a mordernidade.
Verde Neon
Sonho: estou dentro do banheiro
verde neon brota do meu corpo
oxóssi dentro do meu corpo
sonho: oxóssi usa minha boca
entoa rimas que não podem sair
do limite das pálpebras fechadas
oxóssi usa meus braços
a curva no ar que não se repete
fora do limite das pálpebras fechadas
oxóssi não repete nenhum movimento
nenhuma sílaba
somente a memória
até que a curva
se perca
no ar inexistente
e o verde neon
(musgo na pele lama)
apague,
se possível.
(Poesia, Ruído – Três poemas de Lucas Litrento, 9 de março de 2020)
A literatura negra, a partir de suas escrevivências e narrativas, resgatam a palavra não dita como tenta Maria Firmina. Não somente como uma ferramenta pedagógica que nos leva ao deleite da leitura e da identificação, gerando emoções agradáveis ou desagradáveis, mas como direito humano fundamental, o direito à própria história, à identidade e à reparação simbólica. Quando Lucas Litrento transforma o verde de Oxóssi em neon contemporâneo, ou quando Conceição Evaristo faz da escrita ato de “restauração de humanidade”, estão exercendo o direito à autonomia emocional na perspectiva de Bisquerra: o direito de nomear suas próprias emoções a partir de referenciais culturais suas e de seu povo. Esta é a base para a construção do bem-estar, poder construir-se a partir de narrativas que não apenas incluam, mas restaurem e previnam que o passado volte a acontecer.
Por fim, o filósofo e educador Abdias Nascimento, um dos fundadores do Teatro Experimental do Negro, afirma que suas produções literárias eram instrumentos de cura coletiva. Ele conseguia mostrar, em suas peças, como a representação artística permite a reconstrução da autoestima e o enfrentamento do “trauma do apagamento”. A educação socioemocional, a partir da literatura, pode possibilitar a construção de uma dimensão humana através do texto literário, que exige um espelhos onde todos possam se reconhecer como sujeitos de suas própria história, desenvolvendo assim, autonomia, autovalorização, autoeficácia e sua própria autoestima.
Referências
https://www.nossapoesia.com/poema/ah-nao-posso-maria-firmina-dos-reis/
https://www.gov.br/palmares/pt-br/assuntos/noticias/teatro-experimental-do-negro-ten
